terça-feira, 25 de abril de 2017

JACINTA PASSOS (1914-1973)




Canção do amor livre

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.
Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.
Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.

Teu corpo.
Relâmpago, depois repouso
sem memória, noturno.
 
        Incerteza

Em meu olhar se espelha
a sombra interior de incerteza angustiante.
E em minha alma floriu como rosa vermelha,
de um vermelho gritante
como o clangor de um clarim,
essa angústia que vive a vibrar dentro em mim.
É minha vida um longo, ansioso esperar
num amor que há de vir.
Amor, prazer que é dor e sofrer que é gozar,
amor que tudo dá e sem nada pedir,
e que às vezes, num segundo,
resume a glória toda e toda a ânsia do mundo.
Mas depois desse amor, o que virá? O tédio
insípido e tristonho,
desenganos sem cura e dores sem remédio,
com a posse dum bem, o desfolhar dum sonho.
Não vale mais, muito mais,
desejar sempre um bem sem possuí-lo jamais?
Oh! não. O coração
não se cansa de amar se sabe querer bem,
ter para o erro, o perdão,
renunciar a si mesmo e viver para alguém.
E se um motivo qualquer,
imperioso e fatal, o sonho desfizer,
então eu saberei bendizer, comovida,
o amor que já passou
deixando uma doçura amarga em minha vida.
Quando o sonho murchou,
também a esperança finda,
mas dentro d’alma fica uma saudade ainda.
(1934)
Jacinta Passos nasceu em Cruz das Almas, Bahia, em 1914. Escreveu quatro livros de poesias: — Momentos de poesia (1941), Canção da partida (1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958)

“Jacinta tornou-se uma das mais ativas jornalistas da Bahia na década de 40, escrevendo sobre os assuntos que mais a interessavam, pelos quais lutava: política, transformações sociais e posição da mulher na sociedade. Colaborou também com jornais e revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Militante do Partido Comunista Brasileiro de 1945 até a morte, em 1973, dedicou grande parte da vida ao trabalho penoso, clandestino e cotidiano de luta por um Brasil menos injusto.”

“Jacinta Passos foi uma mulher à frente de seu tempo. Nascida no ano da eclosão da Primeira Guerra Mundial, e educada em tradicional família do interior da Bahia, Jacinta paulatinamente rompeu os limites impostos por sua época e situação social. Fez da poesia arma de esplendor e guerra. Incansável jornalista, foi das raras mulheres da Bahia, no inicio da década de 1940, a expressar publicamente suas opiniões, nem sempre concordantes com as da maioria.”

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